O MISTÉRIO DA ÁRVORE
Raul Brandâo
Esgalhada e seca, os seus
frutos eram cadáveres ou corvos. Ninguém
se lembra de que tivesse dado folhas nem flor, a árvore enorme que havia
séculos servia de forca: ninguém se deitava à sua sombra, e até o sol fugia da
árvore estarrecida e hirta que havia séculos servia de forca.
Em frente ficava o
Palácio real, construído num bloco de pedra escura, e só o Rei, de alma igual à
sua alma, nua e trágica, se pusera a amá-la, a árvore triste que havia séculos
servia de forca.
Que doença
estranha, lenta, mas tenaz, matava o Rei?
Só amava os crepúsculos, as agonias da luz, o passado, e a multidão
silenciosa vinha vê-lo, ao fim da tarde, de cabeça encostada aos vidros das
janelas, fixo o olhar nas águas verdes e limosas e no espectro da árvore
levantada diante do Palácio. Tudo que
era vivo fugira de ao pé dele, porque o Rei mandava punir a mocidade e o amor,
e dez léguas à roda o país tinha sido assolado pelos seus guerreiros
brutais. Mandara queimar tudo, devastar
tudo no seu reino. Nem uma folha nem uma
ave - nem um sinal de vida. De pé, unicamente
a árvore, desde séculos estarrecidos e hirtos, a árvore maldita que no seu
reino servia de forca.
No silêncio tumular
do Palácio os passos do Rei ecoavam pelos corredores desertos, lentos ou
precipitados, conforme o pensamento tenaz que o devorava, gastando pouco a
pouco as lajes duras do chão. Não podia amar.
Nem a voluptuosidade, nem o ideal, nem o amor, nem a carne láctea das
mulheres: tudo lhe era vedado. Horas
atrás de horas se ouviam no Palácio os passos do Rei doente, toda a noite, toda
a noite a rondar...
Sucedeu que veio a
Primavera e todas as árvores, para lá do território assolado, estremeceram e se
cobriram de flor. Borboletas nascidas do seu hálito noivavam no azul e dois
mendigos amorosos, de países lendários, entraram e perderam-se naquela terra bragueta,
ela envolta na poalha dos cabelos loiros, ele feliz e esbelto, preso ao seu
olhar. Eram pobres. E assim, apenas vestidos, vieram enlaçados
com a Primavera, cobrindo a terra erma, que calcavam, de vida e amor. Eram
pobres e felizes. Flores esvoaçavam pela
sua nudez, e as macieiras dos quintais deitavam galhos fora dos muros, de
propósito para vê-los passar.
Azul, sonho,
entontecimento, toda a atmosfera estremecia. Só o Rei no Palácio deserto vivia
braço a braço com a dor. A vida, a luz, as árvores enojavam-no. Queria todo o país negro, deserto e
escalvado; e o amor, que trespassava a terra e os bichos, a própria morte que
tudo transforma, lhe parecia abominação e afronta. Odiava a vida. Mas deitava-se e sentia palpitar as fragas:
os montes eram seios duros, as árvores cabelos ao vento. Para não ver,
encerrava-se no Palácio construído dum bloco de pedra e sozinho ficava então de
olhos postos na árvore.
Contemplava-a. Como o Rei, ela
era seca e hirta - fora-o sempre - e os seus frutos cadáveres ou corvos. À
passagem de Abril e dos mendigos, tudo à volta se transformava; só ela quedava
inerte diante da vida e do amor, a árvore trágica que havia séculos servia de
forca.
Um dia o Rei soube
que dois seres felizes haviam transposto as fronteiras e mandou-os logo
prender. Nas últimas noites sentira-os nos espinheiros túmidos, nos sapos dos
caminhos, que pareciam extáticos, nás coisas que estremeciam, na noite
magnética cheia de murmúrios, no vento que atirava para o castelo ramos de
árvores luminosas. Punha- se de ouvido à
escuta, e a terra, a noite e o mar, sufocados, iam talvez falar, iam enfim
falar!...
Quando os soldados
os trouxeram ao Palácio, com eles entrou um bafo novo; cheiravam a sol e à
lama, dos caminhos e pegava-se lhes húmus aos pés descalços. A vida rompeu por aquele túmulo dentro e,
pois que iam morrer, dir-se-ia que a morte, em lugar da foice simbólica, pela
primeira vez trazia nas mãos um ramo de árvore.
Dois mendigos e
amavam-se! Nem sequer eram extraordinariamente belos, mas deles irradiava uma
força imensa - daquela moça sardenta, com resquícios de palha pegados aos
cabelos, daquele homem cuja carne aparecia entre os farrapos. Não davam pelo
Rei, não davam pela Morte. Amavam-se.
Atreviam-se num país que ele mandara assolar para que nunca mais diante
de seus olhos pudesse aparecer a imagem da vida e do amor!
Olhou-os o Rei
durante alguns minutos em silêncio e depois fez um gesto aos carrascos, que
logo se apoderaram deles e os levaram.
Sorriam-se os mendigos, cheios de terra e ervas, e, enlevados, olharam
um para o outro, ignorando o que se passava em volta - olhos nos olhos, mãos
nas mãos...
Noite negra, o Rei
subiu sozinho ao terraço. Restos de nuvens, restos de mantos esfarrapados
arrastavam-se pelo céu. A árvore onde os
dois haviam sido enforcados mal se distinguia no escuro; mas de lá vinha um
frémito, a sua agonia talvez, e uma claridade, os seus corpos decerto. Em vão
reduzira tudo a cinzas - por baixo das cinzas latejava a vida. Toda a terra parecia fermentar. Ouvia murmúrios. Se as árvores falassem! se
as árvores e as coisas dissessem tudo que sabem! A água chilrava, perdia-se em
fios pela terra. Mas então ele não
mandara secar as fontes? Vozes, mais
vozes ainda no escuro, a voz baixinha e humilde das árvores cheias de folha,
que o vento chegavam umas para as outras... Mas então ele não mandara despir
para sempre as árvores? Pior... Mais
fundo ainda, no negrume opaco da noite, o sussurro da vida - como se ele não
tivesse mandado espezinhar a vida!...
Encostado à muralha, passou a noite absorto. As nuvens galopavam, o grasnido dos corvos
afligia-o... Porque não iria ele também
ser macieira, mendigos, húmus? Transformar
a dor em felicidade? beber o sol arrastado na aluvião da vida? Oh! Como odiava
a mocidade, a ternura, os lábios moços que se beijam!...
Só a árvore
esgalhada e seca o prendia ainda, a árvore sinistra que no seu reino servia de
forca.
Ficou até de manhã
de olhos postos naquele fantasma triste e enorme, negro como as ideias negras
que tecia seco como a sua própria alma - a árvore desmedida que no seu reino
servia de forca... Começaram os cerros a
tingir-se de violeta, as árvores a azular e a forca, em que se absorvia, a
destacar-se de entre a névoa, a árvore esgalhada e imensa que havia séculos
perdera a seiva e a vida.
Súbito ficou imóvel
de espanto. Aquecida com o amor de dois mendigos, tinha o galho em que pendiam
enforcados cheinho de flor. Dura e má
como as pragas, juntara no ramo que os cobria toda a flor que a terra assolada
não pudera produzir. Era nada, quase
nada, algumas flores miudinhas prestes a sumirem-se ao primeiro sopro - era dor
estreme e sonho estreme. Nos seus braços
haviam sido enforcados muitos desgraçados e as suas raízes mortas pelas
lágrimas de aflição. Tolhida com os
gritos, não bebia água nem sugava húmus.
Vira passar homens, Primaveras e
reinados, sem se comover, mão arrepelada a amaldiçoar a terra e o castelo.
Assistira a transformações de solo, a tempestades, a cataclismos e a guerras,
sempre petrificados como a morte - e naquela noite, trespassada pelo amor dos
dois mendigos, desentranhara-se em ternura, como se nela se concentrasse toda a
paixão, a Primavera e o noivado da terra - a árvore maldita que desde séculos
servia de forca.
El misterio del árbol
Raúl Brandao
Versión
Sergio Núñez Guzmán
Ramificado y
seco, sus frutos eran cadáveres o cuervos. Nadie recuerda que hubiese dado
hojas ni flor, el árbol enorme que hacia siglos servía de horca, nadie se
deleitaba con su sombra, y hasta el sol hacía del árbol yerto que atemorizaba y
que hacía siglos servía de horca.
En frente
estaba el palacio real construido en un bosque de piedra oscura, y sólo el rey,
de alma igual a su alma, desnuda y trágica, se pusiera a amarla, el árbol
triste que hacía siglos servía de horca.
¿Qué dolencia
extraña, lenta, más tenaz mataba el rey? Sólo amaba los crepúsculos, las
agonías de la luz, el pasado; y la multitud silenciosa venía a verlo, al fin de
la tarde, con la cabeza recostada en los vidrios de las ventanas, fijo el mirar
en las aguas verdes y limosas y en el espectro del árbol levantado delante del
palacio. Todo lo que estaba vivo huirá del pie de él, porque el rey mandaba
castigar el mocedad y el amor, y diez lenguas a la redonda el país había sido
asolado por sus guerreros brutales.
Había mandado quemar todo, devastar todo en su reino. Ni una hoja ni una
ave, ni una señal de vida. De pie, únicamente el árbol desde siglos yerto y que
atemorizaba, el árbol maldito que en su reino servía de horca.
En el silencio
sepulcral de palacio los pasos del rey se escuchaban por los corredores
desiertos, lentos o precipitados, conforme el pensamiento tenaz que lo
devoraba, gastando poco a poco las lajas duras del llamo. No podía amar. Ni la
voluptuosidad ni el ideal ni el amor ni la carne láctica de las mujeres. Todo
le era vedado. Hora tras hora se oían en
el palacio los pasos del rey doliente, toda la noche, toda la noche a rondar...
Sucedió que
vino la primavera y todos los árboles, para allá del territorio asolado, se estremecían
y se cubrían de flor. Mariposas nacidas de su hálito se comprometían en el azul
y dos mendigos amorosos de países legendarios habían entrado y se habían
perdido en aquella tierra llagosa, ella envuelta en la polvareda de cabellos
dorados, él feliz y esbelto, preso al mirarla. Eran pobres. Y así, apenas
vestidos, vinieron enlazados con la primavera, cubriendo la tierra yerma que
oprimían con vida y amor. Eran pobres y
felices. Flores revoloteaban por su
desnudez y los manzanos de las quintas inclinaban ramas fuera de los muros, con
el propósito de verlos pasar.
Azul, sueño,
aturdimiento, toda la atmósfera se estremecía.
Sólo el rey en el palacio desierto vivía brazo a brazo con el
dolor. La vida, la luz, los árboles lo
enojaban.
Quería todo el
país negro, desierto y decalvado; y el amor, que traspasaba la tierra y los
bichos, la propia muerte que todo transforma, le parecían abominación y
afrenta. Odiaba la vida. Mas se deleitaba y sentía palpitar las fragas: los
montes eran senos duros, los árboles cabellos al viento. Para no ver se encerraba en el palacio
construido de un bloque de piedra y solito se quedaba entonces con los ojos
puestos en el árbol. Lo
contemplaba. Como el rey, era seco y
yerto, fuérzalo siempre, y sus frutos cadáveres o cuervos. Con el paso de abril
y dos mendigos, todo a la vuelta se transformaba; sólo el árbol quedaba inerte delante de la
vida y del amor, el árbol trágico que hacía siglos servía de horca.
Un día el rey
supo que dos seres felices habían transpuesto las fronteras y luego los mandó
aprender. En las últimas noches los
sentirá en los espinos túmidos, en los sapos de los caminos, que parecían
estáticos, en las cosas que estremecían, en la noche magnética llena de
murmullos, en el viento que tiraba para el castillo ramas de árboles luminosos.
¡Se ponía de oído de escucha, y la tierra, la noche y el mar, sofocados, ya tal
vez de hablar, ya en fin de hablar!...
Cuando los
soldados los trajeron a Palacio, con ellos entró un aliento nuevo, olían a sol
y a lama, de los caminos se les pegaba lumas a los pies descalzos. La vida rompió por aquel túmulo dentro y,
puesto que iban a morir, se debía que la muerte, en lugar de la hoz simbólica,
por primera vez traía en las manos un ramo de árbol.
¡Dos mendigos
se amaban! Ni siquiera
extraordinariamente bellos, mas de ellos irradiaba una fuerza inmensa, de
aquella moza pecosa, con resquicios de paja pegados a los cabellos, de aquel
hombre cuya carne aparecía entre los harapos.
Nada daban por el rey, nada daban por la muerte. Se amaban.
Se atrevían en un país que él mandara asolar para que nunca más delante
de sus ojos pudiese aparecer la imagen de la vida o del amor.
Óbolos el rey
durante algunos minutos en silencio y después hizo un gesto a los verdugos, que
luego se apoderaron de ellos y se los llevaron.
Se sonreían los mendigos llenos de tierra y hierbas, y, extasiados
miraron uno para el otro, ignorando lo que pasaba en su alrededor, ojos en los
ojos, manos en las manos...
Noche negra, el
rey subió solito a la terraza. Restos de
nubes, restos de mantos desganados se arrastraban por el cielo. El árbol donde los dos habían sido ahorcados
mal se distinguía en lo oscuro, más de allá venía un susurro, su agonía tal
vez, y una claridad de sus cuerpos combatida.
En vano reducirá todo a cenizas,
por debajo de las cenizas palpitaba la vida. Toda la tierra parecía fermentar. Oía murmullos. ¡Los árboles se hablaban! ¡Los árboles y las
cosas se decían todo lo que saben! El
agua charlaba, se perdía en hilos por la tierra. ¿Más entonces él no había mandado secar las
fuentes? Voces, más voces todavía en lo
oscuro, la voz bajita y humilde de los árboles llenos de hojas, que el viento
allegaba unas a otras... ¿Más entonces
él no había mandado despojar para siempre los árboles? Peor...
Más hondo todavía, en la negrura opaca de la noche, el susurro de la
vida, como si él no hubiese mandado pisotear la vida... Acostado sobre la
muralla, pasó la noche absorta. Las
nubes galopaban, el graznido de los cuervos lo afligía... ¿Por qué no sería él también manzano,
mendigos, humus?, ¿Transformar el dolor
en felicidad?, ¿beber el sol vagabundo
en el aluvión de la vida? ¡Oh!, cómo
odiaba la mocedad, la ternura, los labios mozos que se besan...
Solo el árbol
ramificado y seco lo prendía todavía, el árbol siniestro que en su reino servía
de horca. Se quedó hasta de mañana con los ojos puestos en aquel fantasma
triste y enorme, negro como las ideas que tejía, seco como su propia alma, el árbol desmedido que en su reino servía de
horca... Habían comenzado los cerros a reírse
de violeta, los árboles a desaparecer y
la horca, en que se absorbía, a destacarse de entre la niebla, el árbol ramificado e inmenso que hacía
siglos había perdido la savia y la vida.
Súbitamente se
quedó inmóvil de espanto. Entusiasmado
con el amor de dos mendigos, tenía la
rama en que pendían los ahorcados, llena de flor. Duro y malo como las plagas, había juntado en
la rama que los cubría toda la flor que la tierra asolaba no pudiera
producir. Nada era, casi nada, algunas
flores avaras prestas a sumirse al primer soplo, era dolor genuino y sueño
genuino. En sus brazos habían sido
ahorcados muchos desgraciados y sus raíces muertas por lágrimas de
aflicción. Tullida con los gritos, no
bebía agua, tampoco chupaba humus. Había visto pasar hombres, primaveras y
reinados, sin conmoverse, mano desesperada por maldecir la tierra y el
castillo. Había asistido a transformaciones de suelo, a tempestades, a
cataclismos y a guerras, siempre petrificada como la muerte, y en aquella
noche, traspasada por el amor de dos mendigos, se había desentrañado en
ternura, como si en él, se hubiera concentrado toda la pasión, la primavera y
el noviazgo de la tierra, el árbol maldito que desde siglos servía de horca.
Versión: Sergio Núñez Guzmán.
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